Ainda a manhã tinha os olhos
colados com ramela quando João Murídeo, o rato, entrou, ladino e decidido.
O gabinete, amplo e luxuoso,
cheirava a lavanda e Murídeo torceu o pontiagudo nariz às mordomias do presidente.
Que porcalhão! pensou contrafeito. Cai-lhe bem o adjetivo, ao Presidente da
ARCUJA, Associação Recreativa e Cultural do Jardim.
Trepou pela perna direita da
secretária, a que ficava do lado de dentro, seja do lado da poltrona, como lhe
tinha dito o Secretário das Forças da Ordem. Logrou entrar, sem grande esforço,
pelo buraco da fechadura da gaveta inferior e procurou o dossiê do fundo, o que
tinha a etiqueta “Luvas da toupeira marinha”.
Quando soube o nome do dossiê
achou estranha a parte das luvas. Que se soubesse uma toupeira marinha era um
navio que se desloca debaixo de água, construído em ferro. Ora, assim sendo, as
luvas não vinham ao caso porque tal toupeira não tem mãos nem patas. Luvas para
quê? Insondável matéria politiqueira.
Meteu-se por baixo das pastas e
começou a puxar a última, a tal das luvas e conseguiu deslocá-la cerca de cinco
centímetros. Complicava-se o caso porque a pasta era volumosa e pesada. Com
grande esforço conseguiu arrastá-la um pouco mais e iniciou, sem demoras, a
tarefa de roer.
A ordem que recebera do secretário
era no sentido de roer todo o dossiê, que não ficasse uma ponta de papel
intacta, tudo tinha que ser destruído como só os ratos o sabem fazer. O lixo
que restasse da tarefa podia lá ficar, não havia problema, o presidente haveria
de ficar danado com os ratos e, de imediato, ordenaria uma ampla desratização
do palácio – se bem o conhecia. O que, do ponto de vista do secretário, de nada
adiantaria porque a pedra no seu ministerial sapato estaria removida.
Murídeo, no entanto, tinha outros
planos. A Rosinha Musaranha estava de esperanças e ele tinha que aprontar uma
cama condigna para ela e para a ninhada. A roedura do dossiê vinha mesmo a
calhar. Com uma cajadada matava dois coelhos. Porra! que estultícia pensar
agora no seu primo de quem – não se pode dizer que admirasse – gostaria de ter
herdado o corpanzil. A questão era saber se, com aquele mísero corpo, conseguiria
transportar tanto papelinho desfeito para a toca. Confiava, no entanto, que
conseguiria dar a volta ao caso. Não fosse ele um rato!
Bem, o importante agora era
cumprir a tarefa de que fora incumbido e, depois, integrá-la no seu projeto de
família. Roeu com mais afinco.
Ao fim de duas horas estava tudo
ruído, sem ponta de papel legível. Olhou para a sua obra, radiante. Recostou-se
na parede da gaveta e descansou um pouco. Estava sequioso, saiu e descobriu um
copo com água pelo meio, abandonado numa ponta da secretária. Olhou para ele e
a sede aumentou quando descobriu que era extremamente perigoso entrar no copo.
Corria o perigo de não conseguir de lá sair.
Chegara, então, a parte sua da
tarefa. Encheu as bochechas com pedacinhos de papel até não poder mais e
iniciou o transporte para a toca. Ah! como a Rosinha iria ficar contente.
Quando os primeiros raios de sol
entraram no gabinete estava Murídeo a transportar a última parcela de sumaúma.
Colocou-a na parte da toca onde estava o restante e voltou ao gabinete. Na rua
iniciava-se o corrupio dos funcionários e ele apressou-se, embora soubesse que
era, ainda, muito cedo para o presidente. Contemplou a arena onde decorrera o
combate e achou que estava tudo perfeito. Tivera o cuidado de deixar alguns
pedacinhos de papel na gaveta e um indelével rasto que marcava o trajeto dentro
do gabinete. Aí terminavam os indícios. Fora do gabinete não havia a menor ponta
de papelada, para que não fosse descoberta a sua toca.
O secretário das forças da ordem
ficou radiante com o trabalho, embora inicialmente tivesse colocado algumas
reticências quanto ao aproveitamento da papelada. Queria que fosse inequívoco,
para o presidente, que o dossiê desaparecera por roedura. No entanto, com as
explicações de Murídeo, aquiesceu que, efetivamente, estava contente e feliz
com o resultado.
Ao presidente ia-lhe dando um
treco quando abriu a gaveta da secretária. Convocou a imprensa e a rádio para
comunicar ao país que desaparecera do seu gabinete um dossiê de extrema
importância, ruído por ratos. Comunicou, também, que iria ordenar uma completa
desratização do palácio e que os responsáveis iriam ser severamente punidos. Em
primeiro lugar os ratos, com a dita desratização, depois o pessoal da cozinha,
por se desleixar com os restos de comida que atraiam ratos, a seguir o pessoal
da limpeza, que não tomara atenção à existência de ratos no palácio. Com a
própria esposa, a quem cabia a tarefa de trazer os serviçais obedientes e
cumpridores, tataria em privado. No quarto de dormir.
O secretário riu-se com alarvia.
Sempre queria ver os seus detratores continuarem a bater na tecla das luvas. Pegou
na garrafa de uísque de malte, reserva, 50 anos, encheu o copo, colocou-lhe
quatro pedras de gelo, agitou tudo e riu-se ainda mais alarvemente.
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